Via de
regra todos os operadores de saúde, médicos, médicas e enfermeiros e
enfermeiras, foram moldados pelo paradigma científico da modernidade que
operou um uma separação clara entre corpo e mente, entre ser humano e natureza.
Criou as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das
enfermidades e também para as formas de cura.
Reconhecido
este mérito, não se pode esquecer que se perdeu a visão de totalidade: o
ser humano inserido num todo maior e a doença como uma fratura nesta totalidade
e a cura como sua reconstrução.
Há uma
instância em nós, que responde pelo cultivo desta totalidade, que nos alimenta
o sentimento de pertença e que zela pelo eixo estruturador de nossa vida:
é a dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o
cultivo daquilo que é próprio do espírito que é sua capacidade de projetar
visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e re-ligar todas as
coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se
espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo mas a morte como
ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade é toda atitude e atividade
que favorece a expansão da vida, a relação consciente, a comunhão aberta,
a subjetividade profunda e a transcendência como modo de ser, sempre disposto a
novas experiências e a novos conhecimentos.
Neurobiólogos
e estudiosos do cérebro identificaram a base biológica da espiritualidade. Ela
se situa no lobo frontal do cérebro. Verificaram empiricamente que sempre que
se captam os contextos mais globais ou ocorre uma experiência
significativa de totalidade ou também quando que se abordam de forma
existencial (não como objeto de estudo) realidades últimas, carregadas de
sentido e que produzem experiências de veneração, devoção e respeito, se
verifica uma alta de vibração em hertz dos neurônios. Chamaram a este
fenômeno de “ponto Deus” no cérebro ou da emergência da “mente mística”.
Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta a presença do
Inefável dentro da realidade.
Este
dado constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que, enquanto
homem-espírito, percebe a Última Realidade penetrando em todas as coisas. Dá-se
conta de que pode, surpreendetemente, entabular um diálogo e buscar uma
comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o dignifica, pois o liberta do
desenraizamento, o espiritualiza e o leva a graus mais alto de percepção do Elo
que liga e re-liga todas as coisas.
Este
“ponto Deus” se revela por valores intangíveis como mais amorização, mais
compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade.
Despertar este “ponto Deus”, tirar as cinzas que uma cultura
demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a espiritualidade
aflore na vida das pessoas.
No
termo, espiritualidade não é pensar Deus mas sentir Deus mediante este órgão
interior e fazer a experiência de sua presença e atuação a partir do coração.
Ele é percebido como entusiasmo (em grego significa ter um deus dentro) que
nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a vontade de viver e de criar
continuamente sentido de existir e de trabalhar.
Que
importância emprestamos a esta dimensão espiritual no cuidado da saúde e
da doença? Ela possui uma força curativa própria. Não se trata de forma nenhuma
de algo mágico e esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são
próprias da dimensão espiritual tão válida como a inteligência, a libido, o
poder, o afeto entre outras dimensões do humano. Estas energias são
altamente positivas como amar a vida, abrir-se ao demais, estabelecer laços de
fraternidade e de solidariedade, ser capaz de perdão e de misericórida e de
indignação face às injustiças deste mundo.
Além
de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas, da eficácia dos
diferentes fármacos, existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses.
Ela quer sinalizar um complemento daquilo que já existe mas que o reforça
e enriquece com fatores oriundos de outra fonte de cura. O modelo
estabelecido de medicina não detém, por certo, o monopólio
da cura e da compreensão da complexa condição humana, ora sã e ora enferma. É
aqui que encontra o seu lugar, dentro do campo da medicina científica, a
espiritualidade.
A
espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança nas energias
regenerativas da vida, na competência do corpo médico e no cuidado diligente da enfermeira
ou do enfermeiro. Sabemos pela psicologia do profundo e da transpessoal, o
valor terapêutico da confiança na condução normal da vida. Confiar na vida
significa fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela vale a pena, ela
detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa. Essa confiança
pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence
à espiritualidade, a convicção de que a realidade é maior do que aquela que
captamos com nossos sentidos e com os instrumentos de análise. Podemos ter
acesso a ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pela razão cordial.
Todos os cientistas sabem que a realidade não cabe totalmente em nossos
conceitos. Percebe-se que há uma ordem maior, subjacente à ordem sensível, como
o sustentava sempre o grande físico, prêmio Nobel, David Bohm, aluno predileto
de Einstein.
Esta
ordem subjacente responde pelas ordens visíveis e ela sempre pode nos trazer
surpresas. Não raro, os próprios médicos se surpreendem, com a rapidez com que
alguém se recupera ou mesmo com situações, normalmente, dadas como
irreversíveis, regridem e acabarem levando à cura. No fundo é crer que o
invisível e o imponderável são parte do visível e do previsível. A visão
quântica da realidade confirma o acerto desta perspectiva.
Pertence
também ao mundo espiritual, a esperança imorredoura de que a vida continua para
além da morte, de que nossos desejos de cura, nossos sonhos de voltar à vida
normal deslancham energias positivas que contribuem na regeneração.
Força
maior, entretanto, é a fé de sentir-se sob o olhar bondoso de Deus, Pai e Mãe
de bondade e de estar, como filhos e filhas, na palma de sua mão. Entregar-se,
confiadamente, à sua vontade, desejar ardentemente a cura e a vida mas
também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos para si. Na
perspecitva espiritual, a morte não é entendida como um desfecho trágico mas
como uma travessia na direção da Fonte da vida.
Não
morremos, mas nos transfiguramos. Deus nos vem buscar e nos levar para onde
desde sempre pertencemos, para a sua Casa e para o seu convívio. Aqui se
aviva o “ponto Deus no cérebro” que se revela através de tais convicções
espirituais altamente terapéuticas. Trazem serenidade face a um desenlace
inevitável. A morte aparece então como uma sábia invenção da vida para
esta que possa continuar num outro nivel mais alto.
Leonardo Boff
*Teólogo,
filósofo e autor de O Cuidado Necessário, prestes a sair pela Vozes